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235 KMS DE APRENDIZADO, OU A MINHA DESASTROSA BEM SUCEDIDA PARTICIPAÇÃO DA BR135

  • 10/02/2019 15:47

BR135. Por onde começar? A experiência de ter participado de uma das ultramaratonas mais difíceis do mundo traz a a mente um turbilhão de lembranças.

 

A impressão é que em um piscar de olhos vivemos algumas vidas com experiências intensas e ricas em detalhes.

 

Sou obrigado a fazer um esforço sincero para organizar as minhas recordações e tentar ser o mais fiel possível aos fatos da forma com que sucederam.

 

Dizem que o primeiro passo de uma longa jornada é o mais difícil. No caso da BR esse passo consistiu em preparar um currículo e enviá-lo para o processo de seleção dos atletas que serão escolhidos para fazer as 135 milhas solo. Sim não basta a vontade de fazer a BR, é necessário passar por um processo de seleção onde são escolhidos cerca de 100 atletas em cada edição para enfrentar as "5 maratonas" solo.

 

Não sei exatamente qual o número, mas me disseram que vários atletas ficam de fora da seleção.

 

Confesso que enquanto aguardava o resultado da seleção uma parte minha torcia para que não fosse aprovado. Afinal seria a segunda ultramaratona no espaço de 30 dias e mesmo com a liberação do meu treinador eu me questionava se não estaria exagerando.

 

Mesmo quando vi meu nome na lista de selecionados ainda me sentia hesitante. Sempre tinha achado esse negócio de correr mais de 200 kms coisa de maluco kkk. Apesar de sempre ter sentido vontade de completar 100 kms (não é um número bonito?) em distâncias longas, a BR e outras provas com mais de 200 kms nunca me atrairam a ponto de pensar seriamente em fazê-las.

 

No meu calendário de corridas para o segundo semestre eu já tinha bastante "diversão". Tinha Mizuno Uphill para prestigiar os amigos Igor, Eraldo, Paulo entre muitos outros. Tinha as 12 horas de Piracicaba para reencontrar e matar a saudade do meu amigo Américo, maratona de Curitiba e finalmente o que era até então a prova alvo do ano "O Desafio da Catedrais" em dezempro com 130 kms de estradas rurais.

 

Não precisava da BR esse ano, estava bem satisfeito com o calendário de provas. Mas ai tem um bichinho dentro da gente que funciona como uma trava de segurança quando a gente pensa em desistir. Enfim a sorte estava lançada. Confiava no meu treinador e salvo alguma lesão que pudesse surgir já tinha compromisso para dia 17 de janeiro de 2019 em São João da Boa Vista.

 

Tudo correu bem nos próximos meses, nas provas pude avaliar o treinamento, experimentar estratégias e fazer os ajustes necessários.

 

E então, eis que dia 16 de janeiro de 2019 juntamos os atletas e equipe de apoio no carro alugado e seguimos rumo a São João da Boa Vista.

 

Na BR135 é necessário que cada atleta solo providêncie sua equipe de apoio, entretanto, com a permissão da organização é possível dividir o apoio com mais de um atleta ou até mesmo fazer em modo survival, ou seja sem equipe de apoio. Sendo assim eu e meu amigo Unogwaja Ricardo Almeida optamos por fazer a BR juntos com uma equipe de apoio nos acompanhando.

 

Equipe de Apoio - Foto: (Arquivo Pessoal)

 

Desde o início disse ao Ricardo: "Meu caro já fiz minha ultramaratona de fim de ano agora em dezembro, assim aqui vou te acompanhar. Se falar que vamos parar, paramos. Se falar que vamos comer, comemos. Você é quem manda."

 

Ao meu ver essa era uma ótima estratégia. Ricardo conhecia a BR, já havia feito em dupla. Além disso nossa equipe de apoio também conhecia o caminho e a prova, já haviam feito apoio na BR antes. Um deles (a Luana) tinha inclusive feito a BR em dupla com o Ricardo. Partindo então do pressuposto que eles conheciam muito melhor que eu o que enfrentariamos o mais coerente é que eu fosse o último a falar e o primeiro a obedecer.

 

Uma vez em São João da Boa Vista buscamos o kit da prova, participamos do almoço com os corredores e do congresso técnico. Desse dia o melhor foi reencontrar nesse espaço os amigos corredores. Depois de participar de algumas provas longas você começa a ver que esse é um círculo relativamente pequeno e reencontrar amizades forjadas em provas anteriores passa a ser uma alegria recorrente.

 

Outro fato que vale menção sobre os participantes das ultramaratonas é que invariavelmente eles estão dispostos a ajudar causas sociais. Para a BR tomamos a iniciativa de elaborar e mandar confecionar camisetas alusivas a prova. Divulgamos isso entre os atletas que conheciamos e conseguimos a encomenda de mais ou menos 60 camisetas onde 45% do valor da mesma foi destinado ao apoio de projetos sociais relacionados a BR135. Ninguém reclamou do valor, pelo contrário o pessoal participou e doou de boa fé.

 

No congresso técnico descobri que a BR é uma prova beeeeemm rústica, apesar de estar na sua décima quinta edição a organização das informações para os atletas estreantes deixa a desejar. Por mais boa vontade que os organizadores tenham, esse é um aspecto que pode melhorar. Tive essa percepção no congresso técnico quando a organização foi questionada sobre a real kilometragem da prova. Nos anos anteriores ela tinha 217 kms ou 135 milhas, mas que esse ano em 2019 havia mudado o percurso e apesar de terem falado em 223 kms as contas pareciam não bater. A resposta foi um sincero "não sabemos ao certo, peço que meçam em seus relógios e nos mandem para que tenhamos isso exato para o próximo ano". Em um misto de surpresa e risadas nos conformamos com a situação, afinal quem está na chuva é para se molhar.

 

Findo o congresso retornamos ao hotel para descansar, jantar e nos preparar para os duzentos e sabe-se lá quantos kms do dia seguinte. Nesse momento não sabiamos ainda a sequência de erros que fariam parte do nosso roteiro e deixariam a BR ainda mais difícil.

 

No dia seguinte seguimos para o local de largada, que aconteceria as 10 horas da manhã. Na concentração antes da largada os atletas confraternizavam registrando o momento em selfies e desejando aos companheiros boa sorte e uma boa prova.

 

Equipe de Apoio na Largada -  Foto: (Arquivo Pessoal)

Clodis e César Moro -  Foto: (Arquivo Pessoal)

 

Minutos antes da largada o hino nacional, que é reconhecidamente um dos mais bonitos do mundo e que na minha opinião deveria ser tocado antes de qualquer corrida sempre nos lembrando do ideal de patria que nos cabe construir.

 

As 10 hrs em ponto saem os 98 atletas solo que ousaram se apresentar para a prova solo de 5 maratonas, mais tantos outros das outras categorias, (3 maratonas, revezamento, duplas, etc).

 

Largada com muita energia e incentivos - Foto: (Arquivo Pessoal)

 

Nos primeiros kilometros os carros de apoio não podem acompanhar os atletas e devem seguir direto para a cidade de Águas da Prata. Asism o encontro com o apoio se daria apenas no km 35. Nos kms 14 teriamos um ponto de hidratação com água e refrigerante e no km 20 um segundo ponto de hidratação com água e isotônico.

 

Com nossas mochilas de hidratação seguimos eu e o Ricardo conversando e puxando papo com os outros corredores a nossa volta. No começo tudo é festa e é uma boa oportunidade para conhecer outros corredores, trocar informações sobre a prova e outros assuntos do mundo da corrida.

 

Conhecemos no caminho o Renan (fiz questão de tirar foto com a meia de unicórnio dele), o Leonardo Seabra (que nos contou um pouco da sua participação na ultramaratona "1000km Brasil" correndo 100 kms por dia em 10 dias), o Vinicius (bombeiro de Minas Gerais) e tantos outros com quem fomos brincando. Encontrei vários corredores veganos e vegetarianos. Como também sou vegetariano cada encontro era motivo para brincar e gritar "Força Vegana" que estava estampada nas camisetas de todos eles.

 

Léo, Renan e César Moro -  Foto: Marcos Boratto - http://www.marcosboratto.com.br

 

O clima era muito quente, apesar do céu se apresentar rebuscado de nuvens que nos protegia dos raios diretos do sol, a umidade relativa do ar estava nas alturas e fazia com que nos sentissimos como clientes de um SPA aprisionados em uma sessão interminável de sauna.

 

No primeiro ponto de hidratação, quando saíamos da estrada e entrávamos na área rural tive a oportunidade de conhecer a Dona Tomiko, uma senhora japonesa que começou a correr com os seus 48 anos e hoje já com 67 acumula um currículo de mais de 84 ultramaratonas.

 

Estávamos apenas no km 14 e eu mais uma vez me dava conta que nada como uma ultramaratona para fazer ruir todos os seus pré-conceitos sobre os limites da prática da corrida e do esporte.

 

A partir dali nos disseram que começava o trecho da corrida chamado de "Deus me livre". Curiosos em conhecer esse trecho novo da prova seguimos eu e o Ricardo. Subida, subida, morro, subida... mais subidas. Era uma sequência interminável de subidas, o que ajudava era a beleza da vista das paisagens que nos cercavam.

 

Ao atravessar o "Deus me livre" estávamos no pico do calor, já haviamos sido cozidos no vapor e agora o céu começava a abrir e o sol se fazia presente de uma maneira nada timida. Enquanto subiamos atravessando literalmente um inferno de calor não pude deixar de associar a nossa situação com a jornada retratada nos filmes da trilogia do Senhor dos Anéis quando Frodo e Sam tem que atravessar terrenos inóspitos de pântanos e montanhas em direção a Mordor, uma terra fumegante, para se desfazer do precioso anel de Sauron em um vulcão.

 

Nesse momento assim como Frodo e Sam, eu e o Ricardo estávamos atravessando terras fumegantes e tive a nitida impressão que mais a frente após a próxima montanha encontraríamos um bando de Orcs contra os quais teriamos ainda que lutar pelas nossas vidas.

 

César Moro e Ricardo -  Foto: Marcos Boratto - http://www.marcosboratto.com.br

 

Após alguns kilometros mais um feliz reencontro. Estava ali o Silvio com quem eu havia travado uma disputa pela segunda posição do Desafio das Catedrais um mês antes quando estávamos no km 120 da prova. Relembramos o fato, a dureza da prova, demos muitas risadas, brincamos e ensaiamos nossa cantoria de "Menino da Porteira" nos preparando para quando chegássemos em Ouro Fino.

 

Sílvio e César Moro -  Foto: Marcos Boratto - http://www.marcosboratto.com.br

 

E foi assim que brincando na adversidade chegamos em Águas de Prata no km 35. Para nossa sorte não havia um bando de Orcs a nossa espera mas sim nossa equipe de apoio. Se bem que com um pouquinho de imaginação e a roupa certa eles bem que poderiam ser protagonistas de um dos filme estilo Senhor dos Anéis ou um jogo de RPG.

 

Oferecemos suporte ao Silvio que estava fazendo a prova sozinho em modo survival, entretanto ele optou por seguir. Ali nos despedimos e infelizmente não o encontrei mais nessa prova.

 

Aproveitamos o suporte para comer aquilo que não tinhamos nas mochilas e mandar recados para as famílias e amigos que nos acompanhavam pelo Whatsapp.

 

Para essa prova eu havia caprichado na preparação e organização da minha comida e suplementos. Independente da exatidão das distância a BR é organizada em maratonas. Temos a categoria solo com 3 maratonas e o solo com 5 maratonas por exemplo.

 

Altimetria e separação em montanhas- Foto: (Arquivo Pessoal)

 

Assim para não me perder com a estratégia alimentar preparei 5 sacolinhas com toda a alimentação que deveria consumir a cada maratona. O plano era simples, abrir uma sacolinha a cada maratona e no final dela deveria ter consumido tudo. Esperávamos fazer cada maratona em torno e 8 hrs, assim nossa expectativa era terminar a prova entre 40 e 48 hrs.

 

O planejamento foi muito bom, já a execução nem tanto. Já no primeiro trecho me dei conta ao longo do caminho que havia deixado minhas bisnaguinhas com queijo mel e azeitonas no frigobar do hotel. Esse foi meu primeiro erro. Ao mesmo tempo percebi também que não tinha colocado todo o necessário na mochila de hidratação e por isso mesmo havia consumido menos do que deveria nessa primeira parte da prova. Esse foi meu segundo erro.

 

Havia também percebido que a média dos batimentos cardiacos estava acima do planejado para o início da prova. Depois de encontrar o apoio seguimos com a companhia do João Andrade ao nosso lado e eu parti com o objetivo de corrigir os erros cometidos até esse momento, afinal estávamos apenas no início da prova,

 

Passei a segurar um pouco o passo fazendo diminuir a frequência cardiaca, e passei a consumir mais da alimentação para compensar o que havia deixado de consumir nos primeiros kilometros.

 

Mais ou menos 10 kms depois chegamos ao Pico do Gavião. Segundo o mapa de altimetria seria a parte mais alta do caminho. João estava comigo e o Ricardo havia se distânciado a frente a medida que eu havia diminuido acompanhando os batimentos cardiacos. O sol ainda era forte, mas eu estava contente pois a média dos batimentos estava baixando paulatinamente e eu sabia que o que economizasse de energia agora me serviria muito bem no final.

 

Para o Pico do Gavião os carros e apoio não podem acompanhar os corredores e precisam nos esperar no pé da subida. Ainda era dia e o calor incomodava junto com os raios do sol. Foi uma subida de aproximadamente 4 kms. Subida forte que depois de mais de 45 kms de prova pareciam intermináveis.

 

Enquanto subiamos encontrávamos vários amigos corredores já descendo o pico e batia aquela inveja "Ai que bom se já estivesse descendo". Um desses corredores foi o Ricardo, que continuava a nossa frente.

 

Já haviam nos avisado que a subida parecia nunca terminar, assim desde cedo não nutri esperanças de que fosse menor do que havia imaginado. Pintei um cenário difícil em minha cabeça e segui resoluto, havia me preparado mentalmente para a dificuldade do Pico.

 

O que não estava preparado era para a beleza que se descortinou diante dos nossos olhos uma vez que alcançamos o pico. Uns 200 metros antes desse cenário um membro do staff da prova nos avisou que aquele era o ponto de retorno e que podiamos voltar. Mas seguindo o conselho do nosso amigo corredor Eduardo, que estava conosco nesse momento, continuamos em frente e depois de alguns arbustos tive uma das mais belas visões da natureza que já vi até hoje.

 

Naquele momento a emoção se fez presente realçada pelo esforço despendido até ali. Com o relógio marcando mais de 50 kms, os olhos ficaram marejados enquanto observavam as várias cidades pelas quais haviamos passado para chegar até lá. A natureza era vasta e bela, e a imensidão daquela da visão fazia parecer que haviamos sido engolidos por uma daquelas telas de cinema gigantescas de 180 graus e não importava para onde olhássemos a visão era bela. Havia um grande gramado que me remetia a lembrança do filme da noviça rebelde quando Julia Andrews no início corre por uma paisagem linda nas montanhas da Austria.

 

Ali no topo do mundo (ou pelo menos do que seria nosso mundo nos próximos dias) pudemos nos refrescar com banheiros e um bebedouro. E como tudo que é bom pode ficar ainda melhor, mais amigos corredores nos encontraram e paramos alguns minutos para deitar no gramado e nas companhias do Marcio e do Fabio (amigos de corrida também do Desafio das catedrais) pudemos descansar um pouco, falar da jornada até aquele momento e dar boas risadas.

 

Momento Pico do Gavião Foto: (arquivo pessoal)

 

Descemos o pico renovados. No caminho incentivávamos os coredores que subiam dizendo que o esforço valeria a pena. Já no pé do pico o Ricardo nos esperava junto com a equipe de apoio.

 

O relógio marcava quase 60 kms. Começava a entardecer. Era hora de colocar os coletes refletivos (item obrigatório na prova durante a noite) e nos equipar com as lanternas de cabeça. A Luana nos deu também 2 apitos caso fosse necessário pedir ajuda estando longe. Nossas mochilas de hidratação tem apitos semelhantes, mas desde Águas da Prata não estávamos mais utilizando-as seguindo mais próximos ao carro de apoio e parando a mais ou menos cada 30 mins para ingerir alguma coisa.

 

João voltou para o carro e o Charlston passou a nos acompanhar correndo. Ele teria uma ultramaratona para fazer no início do ano e o apoio era para ele também treinamento para o desafio que ele próprio enfrentaria em algumas semanas.

 

Seguimos para Andradas e a medida que chegava a noite e o calor amenizava senti minhas forças renovadas. Havia também aumentado meu consumo de carbo e os batimentos cardiacos haviam voltado para a faixa que eu havia planejado para fazer a prova.

 

A partir dai a relação se inverteu, eu passei a abrir distância do Ricardo e ele vinha atrás com o Charlston. Nesse trecho da prova conheci o Cris. Uma americano já veterano da BR135 e da Bad Water (outra prova de 135 milhas que acontece no vale da morte nos Estados Unidos). Me contou que já havia feito a BR135 em 36 horas (excelente marca) e que a Bad Water é bem mais fácil que a BR135. Ele teve que gastar alguns bons argumentos para até me convencer disso. Conversamos muito, ele estava sozinho e tive a impressão que ele gostou de poder conversar com alguém no caminho (imagino que nem todos os corredores estão acostumados a falar em inglês).

 

Até Andradas eu corria na frente até o suporte e então esperava que o Ricardo e o Charlston nos alcançassem. Fomos assim cumprindo a distância. Quando estávamos saindo da cidade, no km 70, comi algumas gominhas de carbo e fui tomar um gole de água para ajudar na absorção. Nesse momento senti ânsia e vomitei. Vomitei 5 vezes seguidas completando com sucesso uma lavagem estomacal de dar inveja a qualquer centro médico.

 

Ricardo e Charlston me alcançaram, assim como o carro de suporte. Não me sentia enjoado momentos antes, mas óbviamente havia errado na alimentação. Depois de repassar mentalmente o que havia feito até o momento o diagnóstico do erro foi claro. Na tentativa de compensar a falta de reposição de carbo no início da prova exagerei na segunda parte. A ingestão de sal estava correta, mas deixei a proteína de lado e exagerei nos carbohidratos, Apesar de ter me dado energia o corpo protestou. Esse foi meu terceiro erro.

 

Não senti fraqueza logo em seguida, isso era bom, mas me senti como se em um jogo de tabuleiro tivesse caido em uma casa onde estava escrito "volte cinco casas". Agora me sentia agora enjoado e o organismo não queria consumir nada. O bom é que ainda estávamos no km 70, havia muita corrida pela frente e eu teria tempo de corrigir minha alimentação.

 

Seguimos em frente, eu passei a economizar energia nos kms seguintes pois não conseguia me alimentar. No km 90 chegamos a pousada da Dona Natalina onde um local de repouso com comida.

 

O plano era dormir alguns minutos, comer e seguir. Eu não queria tomar banho, mas a equipe de apoio insitiu. A intenção era boa pois achavam que eu poderia me sentir melhor e passar a comer alguma coisa. Eu cedi e fui para o banho e o resultado não foi bom. Esse foi meu quarto erro.

 

O banho leva muito tempo, o resultado prático em termos de descanso é muito pouco quase nulo. Além disso com o banho a proteção para bolhas que eu havia feito nos pés com esparadrapo saiu, e apesar de ainda não saber, isso me custaria caro nos kms restante da prova.

 

Após o banho dormimos cerca de 40 mins. Troca de roupa feita, fomos comer um prato de macarrão com ovos. Mesmo após o descanso a comida ainda não descia, o corpo ainda recusava o alimento. Tinhamos mais de metade da prova à frente então vestimos os coletes, as lanternas e partimos.

 

Para aqueles que pretendem enfrentar a BR algum dia é importante saber que a organização fornece hidratação nos postos de controle, vi água, isotônico e refrigerante em alguns pontos, mas essa alimentação que tivemos na pousada da Dona Natalina é por conta do corredor. Como o percurso da prova é pelo Caminho da Fé, durante todo ele é possível encontrar locais que estão acostumados a dar apoio aos peregrinos que percorrem esse mesmo caminho todo ano a pé.

 

Além disso em alguns pontos de controle existiam pessoas preparadas para fornecer apoio médico para os corredores, tratando de bolhas e outros problemas.

 

Seguimos em frente madrugada a dentro. Alguns kilometros depois encontramos uma pequena ponte. Ricardo e eu seguiamos juntos e o carro de apoio logo atrás. Deixei Ricardo ir a frente e voltei até o carro de apoio.

 

João e Luana dormiam tentando descansar um pouco. Charlston dirigia o carro e pedi para ele que parasse, desligasse as luzes e me acompanhasse até a ponte.

 

Sem entender nada Charlston em seguiu. Devia estar imaginando qual seria o problema agora. Desliguei minha headlamp e apontei para o céu.

 

Ali mostrei para o Charlston que a nossa frente e acima no céu estava a constelação de Scorpius (escorpião). Como sou escorpiano alguém me ensinou a reconhecer essa constelação quando era criança e nesse momento, em meio a estrada rural com uma visão privilegiada do céu, aproveitei para ensinar ao Charlston como reconhecê-la.

 

Em uma ultramaratona temos tempo suficiente para travar uma conversa interna com nós mesmos e todo pequeno detalhe pode ser visto como “um copo meio cheio ou meio vazio”. Todo pequeno detalhe e pensamento pode ser usado para incentivar a continuação do esforço ou a desistência.

 

Naquele momento em que ainda não conseguia me alimentar, escolhi interpretar constelação a nossa frente como um incentivo a continuar em frente. Estava ali um conjunto de estrelas me mostrando o caminho. Entre elas estava Antares a 16 estrela mais brilhante do nosso céu, bem maior que o nosso sol e que na bandeira nacional representa o estado do Piauí. Estado esse cuja capital é Teresina, cidade de outro amigo ultramaratonista que treina comigo com o Valmir unes e que inclusive foi quem primeiro me apresentou esse grande campeão ultramaratonista Valmir Nunes que hoje tenho o privilégio de ter como treinador.

 

Assim, ali, icentivado pelo zodiaco, pelos meus amigos ultramaratonistas e treinador segui obediente na direção que a constelação indicava, e ao encalço de Ricardo que já havia ganhado algumas centenas de metros a minha frente.

 

Logo mais encontramos o morro do sabão. Nesse trecho tivemos que deixar nosso apoio para trás pois o carro teve dificuldades para subir.

 

A medida que avançamos na madrugada, timidas pinceladas de um azul mais claro surgiam anunciando a chegada do dia. Era até engraçado, no meio rural, ouvir os galos cantado cá e acolá como uma disputa pelo papel de galo alpha da região.

 

Nesse momento nosso carro de apoio nos alcançou e dei-lhes uma boa notícia. Estava com fome, aparentemente o organismo havia se ajeitado e pedia por comida. Como estávamos próximos da próxima cidade, Crisólia, pedimos ao apoio que seguisse em frente, encontrasse uma padaria e já adiantasse o pedido de um café da manhã.

 

Na entrada de Crisólia sentamos no meio fio próximo a uma padaria e lá nosso apoio estava com um suco de laranja e um misto quente. Aproveitei nesse momento para verificar o pé pois acumulávamos pouco mais de 100 kms percorridos.

 

Para minha surpresa já estava com 7 bolhas nos pés. Apesar de ainda não incomodarem elas poderiam se tornar um problema ao longo da prova.

 

Não costumo ter muitas bolhas e não entendia como da pousada da Dona Natalina até ali poderiam ter surgido tantas. Mais tarde conversando com outros corredores fui entender que quando retirei a proteção de esparadrapo que havia feito no pé para bolhas eu teria que ter feito outra imediatamente antes de seguir. Quando vc retira essa proteção a pele fica sensível e potencializa ao surgimento de bolhas. Mais uma lição aprendida.

 

Não estávamos em um ponto de controle, assim não podia contar com o pessoal especializado da prova para me ajudar com os curativos nas bolhas. Tinhamos ainda mais de metade da prova pela frente e sabia que essas bolhas poderiam ser um problema.

 

Não tive dúvidas, pedi meu kit de primeiros socorros e tratei dos pés. Drenei as bolhas e refiz as proteções de cada um dos dedos. Fiz isso apenas na parte da frente dos dois pés, afinal esses cuidados tomam tempo e a cada minuto que passava o sol se tornava mais forte e presente. Mesmo assim gastei mais de uma hora com esses cuidados.

 

Feito os curativos retomamos nosso caminho e nos próximos kms diversas vezes tive que parar para ajeitar os curativos que havia feito. Minha falta de experiência e pressa fez com que os curativos ficassem de tal forma que pressionavam alguns dedos. A longo prazo o pequeno impacto ia crescendo e o incomodo se transformava em dor.

  

Quando estávamos saindo pedimos que o apoio fosse comprar um reidrate ou pedialite, afinal como havia ficado muito tempo sem comer e beber a noite sentia que precisava repor os sais minerais. Ricardo também pediu e o apoio foi buscar uma farmácia enquanto seguimos em frente.

 

O sol já reinava no céu, e mais uma vez Charlston acompanhou o Ricardo à frente. Ricardo por sua vez demonstrava claramente uma maior tolerância ao sol e ao calor. Eu vinha mais atrás parando para acertar meu improviso de curativos e aproveitando as sombras que encontrava enquanto o apoio não nos alcançava.

 

Pouco tempo depois o apoio chegou mas não conseguiram nada para repormos os sais minerais. Por sorte lembrei que eu tinha um repositor de eletroliticos guardado na minha mochila. Bebe-lo naquele momento foi uma benção e em minutos eu estava de volta ao jogo.

 

Seguimos assim debaixo de sol forte com o apoio nos acompanhando até a cidade de Ouro Fino.

 

Uma vez lá, encontramos novamente amigos corredores e nos reunimos num pequeno espaço de sombra de um quiosque onde sob o olhar alegre da estátua do menino da porteira acabamos com os últimos cocos da vendedora de água de coco.

 

Menino da Porteira Foto: (arquivo pessoal)

 

Não queria parar demais, na verdade o sol extenuante me trazia certa ansiedade, uma vontade de chegar logo onde quer que fosse que tivesse uma estrutura melhor para repousarmos.

 

Saimos em direção a Inconfidentes e chegamos a cidade em torno das 15 hrs. Era o pico do calor e depois de não encontrarmos o ponto de controle da cidade resolvemos parar em um pequeno e simples restaurante para almoçarmos. Outros corredores chegaram logo depois e nosso amigo Cordeiro se juntou a nós para almoçar.

 

Enquanto almoçávamos e mandavamos notícias para as famílias o João Andrade deu uma excelente sugestão. Porque não descansávamos um pouco enquanto o sol estava muito quente e aproveitávamos a noite para seguir e render mais.

 

Cordeiro sugeriu uma pousada próxima onde poderiamos tomar banho e descansar, enquanto ele retornou a prova nós fomos átras da pousada.

 

Dessa vez já escolados com a primeira parada, nada de banho. Apenas revisei os curativos das bolhas e fui descansar.

 

Nossa equipe de apoio havia ficado de nos chamar as 18 horas mas meia hora antes disso acordamos sozinhos. As 18 em ponto saimos eu e o Ricardo enquanto nossa equipe ficou para fechar os quartos e nos seguiu em seguida.

 

Renovados a corrida passou a render mais. Passamos a alcançar os outros participantes e fomos progressivamente ultrapassando um a um. Apesar de bem dispostos Ricardo sofria com assaduras nas virilhas. Ele já vinha sentindo o incômodo desde Andradas, se me lembro bem, e desde lá vinha tratando passando vaselina. Infelizmente as assaduras estavam piornaod e nessa altura ele já era obrigado a alterar sua biomecânica para conseguir correr sem aumentar muito os machucados. Percebia ao ouvir a sua respiração que isso aumentava o seu esforço.

 

No km 145 chegamos a Bordas da Mata onde oficialmente terminava a terceira maratona. No caminho uma caminhonete do staff da prova nos encontrou, disseram que haviam fechado o posto de controle de Bordas da Mata e estavam no caminho indo de encontro aos corredores.

 

Na praça da cidade encontramos uma padaria onde aproveitamos para comer um lanche e voltamos ao percurso.

 

De madrugada chegamos em Tocos de Moji. Lá havia uma pousada onde diversos corredores descansavam. Sem planos para dormir, uma vez que já haviamos dormido a tarde, apenas descansamos um pouco e seguimos caminho. Ali voltamos a reencontrar Cordeiro e Clodis. Aproveitamos para seguirmos juntos.

 

Momento Tocos de Moji Foto: (arquivo pessoal)

 

Ainda nos sentiamos bem, então eu e o Ricardo tomamos a frente de nossos amigos e avançamos madrugada adentro.

 

As assaduras do Ricardo estavam piorando o que exigia cada vez mais esforço dele para tentar lidar com a dor e a busca de uma forma de correr que aliviasse o atrito das feridas. Justamente por isso, não muito tempo depois fomos obrigados a parar um pouco para que o Ricardo pudesse dormir um pouco e recuperar as energias. Dormimos 30 mins dentro do carro.

 

De volta ao caminho partimos em direção a Estiva. A medida que a cidade e o nascer do dia se aproximavam Ricardo externou que estava preocupado com a pesagem. A princípio em Estiva teriamos um posto de controle onde haveria uma pesagem e comparariam nosso peso com o peso medido na entrega do kit 1 dia antes da corrida. Se a diferença de peso fosse grande o participante não poderia seguir em frente.

 

Ricardo estava preocupado, pois além das assaduras ele teve algum tipo de desarranjo intestinal. Isso fez com que ele tivesse que parar pelo menos três vezes no caminho para ir no banheiro, com um pouco de diarréia, e ele acreditava que não estava conseguindo repor seu peso suficientemente com a alimentação.

 

Eu por minha vez já hava superado o problema que havia tido na primeira metade da prova com a alimentação, mas havia diminuido a ingestão de géis e doces e estava priorizando os lanches e refeições pelo caminho. Assim, intercalando comida sólida com os géis e preparados não me procupava com a pesagem.

 

Debilitado pelas assaduras e a questão alimentar Ricardo foi obrigado a diminuir o passo. Mais uma vez alternávamos a posição de liderança na equipe. Eu passei a seguir na frente sempre até o carro de apoio e lá aguardava até que ele nos alcançasse. Fomos assim até Estiva.

 

Já era dia quando chegamos no posto de controle de Estiva. Como haviamos parado para dormir no carro, nossos amigos corredores já estavam no posto descançando e se preparando para última maratona da prova.

 

Com maior estrutura no posto de controle, Ricardo aproveitou para tomar um banho e buscar auxilio para tratar das assaduras que a essa altura já estavam sangrando. Um pouco antes ele havia me confidenciado de que estava considerando abandonar a prova tamanha a dor que estava sentindo.

 

Aproveitei para comer meio lanche na padaria e tomar um suco de laranja. A outra metade guardei na minha mochila para mais tarde.

 

Quando chegamos ao posto de controle já havia amanhecido, mas o tempo que estava levemente fechado. Enquanto aguardava o Ricardo o céu começou a abrir e passei a me preocupar com o calor que estava por vir. Faltavam apenas uma maratona, mas sabia que levaríamos de 6 a 8 horas para fazê-la caso o percurso e as dificuladdes fossem semelhantes ao que haviamos encontrado até ali. Isso significava que pegaríamos muito calor, inclusive o horário de pico.

 

Enquanto esperava vi, ainda, outros amigos corredores saindo e tomei uma decisão, deixaria a equipe de apoio com o Ricardo e seguiria com minha mochila essa última etapa. Se eu mantivesse um ritmo semelhante dos outros corredores poderia contar com a ajuda deles no caso de qualquer problema. O calor realmente me procupava e sabia que quanto mais demorasse mais calor enfrentaria.

 

Apesar de sentir dor nos pés, tanto na frente por causa dos curativos e o impacto nas descidas, quanto na parte de trás por tentar aliviar justamente esse inpacto o sol me preocupava mais. Esse ano o calor do verão estava sendo particularmente alto e mesmo tendo me preparado para tal ele estava sendo o meu maior algoz na prova.

 

Preparei minha mochila enquanto comunicava a equipe dos meus planos. Nesse momento eles pediram que eu ficasse e aguardasse pelo menos para ver se o Ricardo continuaria ou não. Tentei deixar claro que não estava deixando o Ricardo na mão, pelo contrário o apoio ficaria com ele, pois para mim era evidente que nesse momento ele precisava mais de ajuda e eu me viraria.

 

Eu entendia o pedido e preocupação da equipe, afinal as condições eram extremamente adversas e como é que eles poderiam cuidar de nós dois uma vez que estivéssemos separados. Foi minha segunda experiência com suporte compartilhado em ultramaratonas e nas duas tivemos que enfrentar essa situação onde chega um momento em que os atletas naturalmente se distânciam. Enfim descobri que o suporte compartihado acaba trazendo dificuldades, pois uma vez que os atletas não conseguem mais seguir juntos fica difícil para quem está fazendo o suporte, fica difícil para quem fica sozinho e fica difícil para quem fica com o suporte pois vai ficar preocupado com o companheiro.

 

Conclui, com essas duas experiências, que por mais que todos tenham boa vontade o suporte compartilhado em ultramaratonas dificilmente funciona. Entretanto atendendo a minha equipe deixei a mochila de lado e voltei a sentar para aguardar meu parceiro enquanto via as outras equipes sairem para a estrada. Esse foi meu quinto erro.

 

Ricardo voltou renovado e disposto a seguir em frente. Saimos juntos enquanto a equipe de apoio terminava o café para ir ao nosso encontro. Contei para ele que quase havia saído momentos antes, mas ele ficou contente por tê-lo e esperado e por isso fiquei também contente por ter esperado.

 

Logo mais a frente o apoio nos alcançou, a Luana passou a seguir conosco enquanto o apoio foi atrás de soro para o Ricardo. As assaduras continuavam a incomodar e ele precisou ir no banheiro novamente. Além disso a alimentaçaõ estava difícil, ele não conseguia comer mais nada.

 

O calor passava a incomodar bastante, mas faltavam menos de 40 kms. Eu seguia a frente e quando encontrava uma sombra de alguma árvore perdida no caminho eu esperava o carro de apoio e logo em seguida meu parceiro.

 

Quando faltavam 35 kms mais ou menos Ricardo disse que precisava descansar. Segui em frente como estava fazendo em busca de uma próxima sombra e mais ou menos 1,5 kms depois o carro de apoio me alcançou. Disseram que Ricardo estava prestes a abandonar a prova. Ele havia deitado e iria descansar uns 20 minutos e então decidiria se continuaria ou não.

 

Frente a esse cenário retomei o plano anterior de seguir o último trecho sozinho com minha mochila. Pedi que não se procupassem comigo, eu estava confiando que me viraria, mas a equipe disse que aguardariam esses 20 mins e depois seguiriam atrás de mim.

 

Apesar de procurar tranquilizar a equipe de apoio me procupava o fato que os outros corredores que eu conhecia já tinham seguido na frente com seus carros de apoio já fazia algum tempo. Seria muito bom se eu os alcançasse pois poderia contar com algum socorro caso algum problema viesse a acontecer.

 

Segui apertando um pouco o passo e logo mais comecei a alcançar os outros corredores. Fui passando por eles, com o sol a pino e o calor implacável. Sempre que encontrava um carro de apoio pedia um pouco de gelo ou água gelada para molhar minha bandana e meu boné. Fui assim avançando mais tranquilo, sabendo que no caso de alguma emergência poderia parar e esperar uma dessas equipes me alcançar.

 

A partir dai a corrida ganhou um novo sabor, pois apesar do calor e da dor nos pés não haviam descidas muito ingremes, que era quando a dor no pé era maior, e como eu me sentia descansado podia imprimir um ritmo com de corrida.

 

Algumas horas depois, quase chegando na próxima cidade, Consolação, encontrei outra corredora precisando tratar das bolhas do pé. Ofereci ajuda e enquanto conversávamso minha equipe chegou. Me contaram que Ricardo havia voltado para prova e que seguia devagar mas firme alguns kms atrás. Molhei o boné, a bandana, peguei mais gel, rapadura e segui.

 

Chegando em Consolação aproveitei para comer a outra metade do meu café da manhã como almoço enquanto conversava com o staff no posto de controle. Ali me informaram que faltavam em torno de 20 kms apenas. Imaginava que era mais e fiquei feliz com a notícia.

 

Animado voltei ao caminho, logo em seguida passou por mim nosso amigo Cordeiro mais uma vez. Foi impressionante quantas vezes nos encontramos no caminho. Em diversas dessas oportunidades eu o encontrei cansado, por mais de uma vez acompanhei-o por alguns metros e depois segui em frente. Mas agora faltando poucos kms ele havia encontrado um apoio para carregar sua mochila e seguiu em frente ganhando distância rapidamente. Impressionante sua capacidade de renascer na corrida.

 

Outros corredores que encontrei várias vezes foram Clodis e Wilson Bonfim. Inclusive nessa última maratona quando estava sozinho os seus respectivos apoios me prestaram valiosa ajuda. Sou muito grato a eles e seus apoios.

 

Oito kms depois a dor no pés aumentou muito. Na realidade não era uma lesão, mas como meus pés doiam já fazia tempo o corpo começava a se revoltar com a situação continuada. Não era a primeira vez que sentia dores nos pés em ultramaratonas, provavelmente devido ao tempo demasiado grande dessas provas. Entretanto os curativos de proteção das bolhas que havia feito no km 100 potencializaram o contato da parte da frente do pé com os tênis. Como consequência depois de mais de 100 kms a dor na parte da frente dos pés nas descidas era muito grande.

 

Não sei ao certo mas creio que o desgaste e o calor nessa altura da prova aumentaram a sensação da dor nos pés. Precisei diminuir muito o passo. As ladeiras ingremes voltaram a surgir, e quando encontrava uma delas era obrigado a descer como se estivesse pisando em ovos. Passei a mancar como uma resposta inconsciente do corpo dizendo que não queria mais sentir dor a cada passada.

 

Mas faltavam poucos kms. Encontrei um carro da organização e eles me disseram que faltavam apenas 12 kms. Segui mancando. Andar doia, correr doia, mas parar não era uma opção.

 

Mais a frente encontrei outro membro do staff, me disse que faltavam 10 kms. Parecia ter passado uma eternidade desde que faltavam 12 kms. Internamente torcia para que ele estivesse errado e faltasse menos.

 

Encontrei uma pequena venda no caminho onde comprei água gelada. O calor que continuava a ser impiedoso perdia o seu primeiro lugar no pódio dos torturadores e a dor nos pés assumia essa posição. Parecia que esses obstáculos disputavam para ver quem minava mais minhas forças e a disputa entre eles estava concorrida.

 

Mais uma vez os detalhes na ultramaratona contam muito. Tinha comigo em meu pulso um elástico de cabelo da minha esposa. Antes de seguir para a viagem pedi a ela que me desse ele para que eu levasse na prova. Em momentos em que precisava buscar alento e força a lembrança da família que me esperava em casa era sempre um motivador. Por várias vezes durante a prova olhei para o elástico no meu pulso e voltei meus pensamentos para minha família. Isso deixava a corrida mais fácil.

 

Parei para ajustar os tênis e então o meu apoio me alcançou. Estavam a caminho da cidade para comprar mais pomada para as assaduras do Ricardo. Ele continuava na prova fazendo um esforço tremendo para concluí-la. Era realmente admirável.

 

Luana me emprestou dois absorventes que coloquei na palmilha do tênis em uma tentativa de aliviar um pouco o impacto dos pés e segui. Eles iriam até a cidade e voltariam com a pomada e me confirmariam quanto realmente faltava para o final.

 

Concentrado nas passadas segui em frente.

 

Não vi mais nosso carro de apoio. Depois de um tempo estranhei que eles ainda não voltavam pelo caminho. Não deveria demorar tanto. Alguns kms para frente quando novamente sentei para ajustar os tênis uma ambulância parou e me perguntou se eu estava na prova. Consenti afirmativamente e em resposta recebi um balde de água fria: "Você está fora do caminho, errou a entrada".

 

Eu não podia acreditar, justamente nos kms em que estava sentindo mais dor eu havia me perdido. Em plena luz do dia? Esse foi meu sexto erro.

 

Perguntei quanto. "Uns 3 kms foi a resposta"

 

Fiquei muio bravo. Não comigo, não com a organização da prova nem com ninguém. Fiquei bravo com a situação. O que já era duro acabava de ficar ainda mais difícil.

 

Havia terminado de ajustar os tênis. Retornei a direção contrária caminhando agora firme e rápido voltando para a bifurcação onde havia errado o caminho. Por sorte a ambulância que em um primeiro momento havia me dito que não poderia me levar de volta para o caminho mudou de idéia e me deu uma carona até a bifurcação.

 

Lá, ainda bravo, galguei rapidamente uma grande subida que saia da bifurcação. Inexplicavelmente a dor não me incomodava mais. A dor ainda existia, mas eu simplesmente não me importava. Assim como Luke Skywalker havia me rendido ao lado negro da força. Só me importava em chegar.

 

Mais uma vez fui alcançando e ultrapassando os outros corredores. Parei duas vezes para pedir água para dois carros de apoio. Nas subidas caminhava forte, no plano corria o mais rápido que podia. Não sentia câimbras, não sentia fadiga, nem dor muscular. O que mais me incomodava era dor nos pés quando encontrava descidas mais ingremes.

 

Chegando próximo do nosso destino final em Paraisópolis eu estava sozinho, não enxergava nenhum corredor a frente ou átras. Nas descidas quando a dor nos pés era grande eu me lembrava dos muitos obstáculos que haviamos enfrentado. Todos os erros que havíamos cometido e tudo que havia saido errado.

 

A cada passo dolorido das descidas que me levavam a entrada de Paraisópolis eu perguntava agora em voz alta a BR135 o que mais ela tinha na manga. Tivemos problema com alimentação, vômito, bolhas, calor, subidas absurdamente ingremes, descidas igualmente ignorantes, dor nos pés, dor nos dedos, havia me perdido no caminho. Tudo isso em uma mesma prova, mas mesmo assim estava a poucos minutos de terminá-la. Um tempo muito maior do que o o planejado inicialmente mas ainda dentro do limite da prova. Confesso que nesse momento me diverti desafiando a BR a tentar me impedir de cruzar a linha de chegada.

 

Depois de descer mais algumas ladeiras ingremes tentando aprender a arte da levitação, desci a última delas. Uma ladeira que acabava em uma esquina onde um senhor do staff aguardava os corredores alertando-os que não deviam mais seguir as setas amarelas que viravam a direita, mas sim seguir reto até a Igreja e a linha de chegada.

 

Era uma rua plana e eu podia mais uma vez correr, o senhor do staff correu junto comigo como um batedor. Iamos no meio da rua e ele ia parando os carros e anunciando a chegada de mais um corredor.

 

Foi assim que cruzei a linha de chegada da BR135 com meu GPS registrando 240 kms percorridos.

 

Foi uma prova onde errei mais do que acertei. Mas, justamente por isso, o sentimento de realização ao cruzar a linha de chegada foi maior, pois apesar de todos os problemas que enfrentei, consegui superar cada um deles. Nada conseguiu me tirar da prova, a BR bem que tentou, mas ainda não foi dessa vez. Não foi diferente com meu amigo Ricardo. Algumas horas depois ele e nossa equipe de apoio também cruzarama linha de chegada, ainda dentro do tempo limite da prova.

 

Espero que no meu próximo encontro com a BR, agora com as lições aprendidas, possa acertar mais do que errar. E que eu esteja mais uma vez pronto para qualquer surpresa com que a BR possa nos presentear.

 

Recebendo medalha e a camiseta Finisher oficial Foto: (arquivo pessoal)

 

César Moro - Ultramaratonista

 

* Créditos fotos: Marcos Boratto (http://www.marcosboratto.com.br) e arquivos pessoais de César Moro

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